Esta história começa com um rosto, um nome, e um corpo. O rosto de um anjo penitente. O nome de uma bela mulher. O corpo de uma deusa luxuriante.
Ainda assim, esta história começa com uma face, um nome, um corpo. A face de um anjo impiedoso, o nome de uma bela infante, o corpo que jamais mudará.
Um homem de meia-idade, com feições austeras e expressão dura,observa a missa. Mesmo aqui, em Aragão, ele sente o fedor do cheiro de corpo que os estrangeiros tanto desprezam na imundície que é a Europa. Ele traz consigo seu próprio mau-cheiro, da distante Gasconha. A face angelical da criança que ele carrega em seu colo a tudo observa sem expressão, pálida como tantas crianças pouco nutridas neste tempo triste. Os cabelos loiros e lisos da menina contrastam com os cabelos escuros e rançosos dele, mas os olhos cinzentos dela são como os seus. E como eles, observam a missa. O corpo de abadessas que auxilia o santo padre em seu ofício no ano do Senhor de 1303.
O homem de feições austeras, um pai que abandonou seu nome e fez um voto de jamais dizer uma palavra novamente, olha para sua filha. O sangue dela deu a ele mais de um século de existência, mesmo lhe custando a vida de sua esposa. Ele ainda se lembra de quando uma mulher ensandecida, possuída por sabe-se lá que espírito maligno de Satã, invadiu sua casa, e congelou-o com um olhar e uma palavra, curvando-se sobre a menina e matando seu coração. Naquela noite, ele tinha visto o último sorriso de sua pequena criança, última filha de sete que morreram de fome e frio. Ele se lembra dessa noite, quando viu pela última vez uma expressão no rosto da criança, uma expressão de fome, de sede... uma chama infernal que se extinguiu com o sangue de sua mãe.
A menina ouve cada pensamento de seu pai, e nada diz. Ele lembra do voto que ele fez, de só ser ouvido por ela e protegê-la como o anjo negro da morte piedosa que ela se tornara. Sem nada dizer, ela gesticula imperceptivelmente com a cabeça, mal movendo uma mecha de cabelos em sua fronte, e ele, obediente, anda na direção indicada.
Pai e filha dirigem-se ao santo padre, tão imundo quanto tudo ao seu redor. “Bom dia,” diz a menina, com voz suave ainda que monocórdia, “Perdão, padre, mas meu pai ouviu histórias de que há ‘milagres’ aqui. Meu pai não pode falar, e precisa de um ‘milagre’ desde que minha mãe morreu. O que podemos fazer?”
O santo padre sorri, seus olhos astutos reconhecendo a riqueza das vestimentas de uma criança nobre, e seus ouvidos experientes detectando na fluência incomum da criança um sotaque francês e as intenções ocultas de seu pai. Ele responde que o Senhor os auxiliará na próxima noite; um encontro é arranjado, incluindo o irmão mais velho da menina, para o próximo anoitecer. O santo padre pensa, sem saber bem porquê, que a irmã Marzolla seria ideal para o papel a ser desempenhado. Um papel secreto, apenas difundido entre os abençoados com direitos de nascença e grandes somas de ouro e prata.
Durante o dia seguinte, a dita irmã recebe o convite que temera por tanto tempo, o convite de servir ao pecado de um homem como sacrifício para a Santa Igreja... um sacrifício de sangue virgem para banhar o vil metal que impede o prédio de ser tomado pelo senhor do feudo. Um sacrifício que é dito a boca miúda, e que traria desgraça e fogueiras caso descoberto. A irmã Marzolla se pergunta como as pessoas não compreendem que o serviço de Deus é maior que uma pessoa ou um gesto; afinal, se o santo padre diz que o risco de danação não existe quando se é um cordeiro a entregar sua castidade em nome da Santa Igreja, como é possível não acreditar nele? Não são os padres a boca de Deus?
Em uma cela sob a igreja, já à noite, ela aguarda... o santo padre traz consigo dois homens e uma menina. “Qual o seu nome” pergunta o homem mais jovem. “Isabella, senhor.”, responde ela, de olhos baixos por trás de longos cabelos negros, já completamente despida, aguardando aquele que iria deflorá-la, e ao fazê-lo, dar mais algum tempo à Igreja para salvar as almas dos vilões perdidos. “Isabella Marzola”.
Diante dos claros olhos frios da menina loira, o rapaz pálido ergue a mão até o pescoço do santo padre, e o quebra com um estalido seco. Isabella reflete em sua própria face o terror e a surpresa do homem morto, e não reage quando o rapaz avança sobre ela com as presas dos demônios da noite expostas e gélidas. Ela sente tudo isso esvair-se em prazer e desejo enquanto morre. Ela morreria pura, apesar de tudo. Nossa Senhora teria um lugar para ela no Paraíso. Então sente sua vida explodir e empalidecer quando uma maldição de poder e fome lhe desce pela garganta, agarrando-lhe com firmeza o coração, trazendo-lhe uma paródia da vida que se foi em um mundo de sombras.
“Fique parado”, diz a menina ao rapaz, sua voz gelada. Ele, surpreso, obedece. “Fique com ele”, diz a menina à jovem abadessa, que por instinto, obedece também. Uma terceira morte ocorre no chão sujo, quando o jovem pálido torna-se cinzas nas presas de sua vítima, revigorada por uma força que jamais possuiu, bêbada pelo poder e o êxtase de um assassinato que não apenas mata; mas aniquila, não deixando para trás nada além da memória, e erradicando a própria alma imortal que jamais poderá ser salva agora.
Apenas uma dessas mortes será notada pela manhã, no corpo sem vida do padre. Isabella será procurada, e o diabo culpado por levá-la embora e matar o sacerdote que tentou protegê-la. E apenas dois meses depois, a Igreja amaldiçoada será fechada.
“Eu te condeno a jamais ver seu rosto de novo, e não à morte de suas paixões pela loucura, como eu recebi, setenta anos atrás.”, diz a menina, impassível. “Eu jamais conheci o ardor da luxúria de um homem, ou a poesia do amor cortês. Nem jamais desejei conhecê-los. Mas eu irei saber o que cada um representa, e dissecá-los através de você, Isabella. Você será as mulheres que eu nunca fui, as mulheres que jamais desejei ser. E a minha face será a sua em sua memória doravante.”
Isabella nada compreende. Um dia, ela saberá o que lhe aconteceu aqui. Por agora, o horror da morte entorpeceu em seu coração morto.
“Eu não compreendo”, ela diz, hesitante, o sabor de vitae ainda em sua boca, o único calor ao seu alcance o da vida que ela roubou com suas presas. Sua dúvida prolonga as sombras ao redor, e ela olha para a menina sem perceber que usou seu último fôlego nesta frase, e que não respira mais.
A menina loira responde, sem olhar para ela, enquanto seu pai a carrega para fora: “Os homens são os mestres do mundo. Eles já não nos temem como antes, e logo terão coragem para retaliar o que fazemos. Eu compreendo sua lógica e a razão que os tomará. Mas paixões, instintos e desejos eu não posso suscitar naqueles que não são pervertidos o bastante. São os que sucumbem a desejos normais que devo estudar, mas não posso. Você, Isabella, os testará em meu nome e em meu lugar. Por três noites você beberá do meu sangue e ouvirá o que tenho a lhe dizer. E em sete noites a partir de hoje, seduzirá meu primeiro experimento. O primeiro de muitos que virão.”
O homem que carrega a menina contempla a freira que se veste. Embora nada diga, ele percebe a relação entre as duas. Duas belezas virgens e imortais. Um anjo passado e um anjo presente, dois demônios na noite, dois anjos negros da punição divina aos que sucumbem à luxúria e corrupção. Isabella Marzolla e Anabelle Tovar. Sombras e loucura. Ai dos homens que cruzarem seus caminhos... pois uma bela devorará seus corpos em êxtase... e outra bela consumirá seus desejos e lembranças.
No fim, eles são jogos. E nada deles restará.
15 de fev. de 2008
Um Conto... Um rosto...
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